Alguns índices argentinos ainda se sustentam em patamares superiores aos brasileiros, embora crises econômicas tenham tido forte impacto social; o que podemos aprender com nossos vizinhos mais próximos?
Casa Rosada, sede da presidência argentin — Foto: Reuters/Agustin Marcarian
A Argentina, visitada na quarta-feira (6) pelo presidente Jair Bolsonaro, vive, há tempos, um cenário econômico desalentador. A inflação foi de 47% no ano passado, corroendo o poder de compra da população e favorecendo a entrada de 2,7 milhões de pessoas a mais na linha de pobreza. O dólar, que tem forte impacto no dia a dia da economia argentina, valorizou-se 13% sobre o peso apenas no primeiro trimestre deste ano.
E os argentinos ainda têm na memória a crise aguda de 2001, a pior de sua história, quando um congelamento bancário de bilhões de dólares (o “corralito”) gerou corrida aos bancos, rebeliões populares e conflitos que deixaram dezenas de mortos.
A despeito do cenário de crises econômicas ainda mais profundas que as brasileiras, o país vizinho permanece à frente do Brasil em muitos (embora não todos) indicadores sociais importantes, em áreas como desenvolvimento humano, educação e saúde.
O que explica essa diferença social? E ela está a perigo, sob o impacto cumulativo de tantos anos de problemas econômicos?
Primeiro, vamos aos números.
IDH melhor
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado pela ONU a partir de um conjunto de indicadores socioeconômicos, foi de 0,825 na Argentina em 2018, contra 0,759 no Brasil (quanto mais perto de 1 o IDH, melhor é o desenvolvimento do país).
Segundo os parâmetros do Banco Mundial, 0,4% da população argentina vivia com até US$ 1,90 por dia em 2017. No Brasil, esse índice era de 4,8%.
A expectativa de vida de um argentino ao nascer é de 76,7 anos, um ano a mais do que a dos brasileiros.
Para Marcio Bobik, professor de economia latino-americana na Faculdade de Economia e Administração da USP em Ribeirão Preto (SP), trata-se mais de um grande fracasso brasileiro do que de um êxito argentino.
“A Argentina, a despeito de suas crises, de fato tem indicadores de saúde, educação e distribuição de renda bem melhores, embora eles tenham se reduzido por causa da crise permanente. Mas é porque os indicadores do Brasil são muito ruins”, afirma à BBC News Brasil.
“O Brasil tem um PIB maior e uma economia muito mais diversificada, mas índices muito ruins de pobreza e uma das piores distribuições de renda do planeta, o que reflete em seu IDH.”
Ele lembra, por exemplo, que o PIB per capita argentino é bem maior do que o brasileiro: o equivalente a US$ 14.402 (cerca de R$ 55,6 mil) em 2017, em comparação com US$ 9.821 (quase R$ 40 mil) no Brasil.
“Mesmo aos trancos e barrancos, a distribuição de renda argentina se manteve melhor que a nossa ao longo do tempo”, diz Bobik.
Saúde
Assim como o Brasil, a Argentina tem graves problemas sociais, muito a avançar e não figura internacionalmente entre os países de maior desenvolvimento. No entanto, ainda colhe alguns frutos de seu passado mais próspero – o país foi um rico polo exportador e entreposto comercial no século 19 e início do 20, gerando um setor agropecuário bastante produtivo e um nível relativamente alto de renda, relata Bobik. “Mas é também um país de muitas contradições e histórico de populismo.”
Da mesma forma, o Brasil ainda lida com as dificuldades decorrentes de seu tamanho continental (e discrepâncias regionais), além de seu passado escravocrata, que geraram enormes disparidades sociais e de renda.
Isso se reflete, por exemplo, em indicadores ligados à saúde.
A taxa de mortalidade infantil dos vizinhos é de 9,9 bebês a cada mil nascidos vivos, contra 13,5 entre bebês brasileiros, segundo o Pnud (Programa da ONU para o desenvolvimento).
Quase 95% da população argentina têm acesso à rede sanitária, índice parecido na área urbana e na rural. No Brasil, o índice geral é 86%, que cai para 58% na área rural (dados de 2015 da OMS e da Unicef). Menos da metade do esgoto brasileiro é tratado.
A densidade de médicos por 10 mil habitantes é extremamente alta na Argentina: 39,6 em 2017, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. No Brasil, é de 21,5, segundo dados de 2018.
Ao mesmo tempo, a crise argentina tem cobrado seu preço da população mais vulnerável. A incidência de subnutrição de 2015 a 2017 foi de 3,8% da população, segundo a agência de alimentos da ONU. O índice é maior do que o brasileiro (2,5%). Hoje, quase a metade das crianças argentinas está na pobreza, adverte o Unicef.
Educação
A Argentina tem praticamente toda a sua população acima de 15 anos alfabetizada, índice que é de 93% no Brasil – o que resulta, aqui, em mais de 11 milhões de jovens e adultos analfabetos. E nossos vizinhos já nascem com a probabilidade de ter dois anos a mais de estudos: enquanto a expectativa de escolaridade média brasileira é de 15,4 anos, lá é de 17,4.
Embora o Brasil se saia melhor em atendimento escolar à primeira infância (tem uma quantidade maior de crianças de 2 e 3 anos matriculadas em creches), a Argentina tem um percentual superior de crianças matriculadas na educação básica e também de pessoas formadas em cursos superiores, segundo dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e do Banco Mundial.
O Pisa, exame internacional promovido a cada três anos pela OCDE, costuma ser o melhor indicador para comparar desempenho educacional entre países, por avaliar a competência de jovens de 15 anos em Leitura, Ciências e Matemática. Mas no caso da Argentina é preciso fazer uma ressalva: como as amostras do país inteiro foram consideradas pouco confiáveis no exame de 2015 (o mais recente com resultados divulgados), foram validados apenas os resultados referentes à capital de Buenos Aires. E eles foram bastante superiores aos do Brasil.
Os jovens portenhos tiveram nota geral de 475 no Pisa, contra 401 do Brasil (para efeito comparativo, a líder do ranking, Cingapura, fez 556 pontos). Enquanto os portenhos pontuaram 456 na prova de Matemática do Pisa, os jovens brasileiros pontuaram 377.
“No Pisa anterior, de 2012, a Argentina sofreu uma queda e ficou atrás do Brasil, o que foi atribuído a um período de enfoque inadequado no ensino”, explica Claudia Costin, que foi diretora de Educação do Banco Mundial e hoje comanda o Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV Rio.
“No Pisa 2015, a amostra de Buenos Aires se mostrou confiável (ao contrário da amostra do país inteiro) e apontou avanço nas três áreas avaliadas – Leitura, Ciências e Matemática. Houve mais ênfase (na educação do país) em formação técnica, alfabetização e formação de diretores escolares. Ao final deste ano, com a divulgação dos resultados do Pisa 2018, saberemos se essa evolução é sólida e se se estendeu ao restante do país.”
Costin explica que Brasil e Argentina têm alguns problemas em comum na educação – por exemplo, uma formação de professores muito distante da realidade em sala de aula -, mas o país vizinho tem um histórico muito mais sólido de políticas educacionais.
Essas políticas remetem ao século 19, o período áureo argentino, no governo de Domingo Sarmiento (1868-74), que vislumbrou um sistema de educação pública e de qualidade como forma de promoção da igualdade e do crescimento.
“Em seus seis anos de mandato presidencial, foram criadas 800 escolas, que passaram de 30 mil alunos para 100 mil”, explicou, em artigo de 2015, o historiador argentino Alejandro Gómez.
“A abordagem da Argentina foi investir em educação básica, enquanto aqui fizemos a opção, que se mostrou equivocada, de investir primeiro nas universidades para criar uma elite pensante”, afirma Claudia Costin.
“Por isso, o país vizinho tem tantos adultos leitores a mais que nós. Em 1930, o Brasil só tinha 21% das crianças na escola, enquanto os argentinos tinham 60%. Em 1960, eles já haviam universalizado o acesso ao ensino primário, que no Brasil atendia só 40% das crianças. A Argentina investiu em educação com intencionalidade, o que deixou uma herança. Só que eles têm descuidado dessa herança.”
- ARGENTINA
- fonte g1